Onde habita o espírito de um artista? Acho que depende de quando essa pergunta é feita. No momento, se você perguntar isso para a baiana Paula Holanda Cavalcante, talvez encontre cascatas, riachos e ruínas. Vai saber. O fato é que o espírito de um artista é transitório, vive de viajar entre diversos cenários porque esse é o seu ofício. O movimento é o processo.
No caso de Paula (musicista, fotógrafa, acadêmica), cito esses cenários porque são o plano de fundo de seu primeiro EP com o projeto Corpo Expandido, “Entre Ruínas e Devaneios”. Lançado em dezembro de 2021, ele é um álbum instrumental, quatro faixas que descrevem justamente cascatas, riachos, ruínas e um luto em outono através do violão da autora.
As faixas são marcadas pelo clima de melancolia e um vazio que remetem ao período do isolamento e luto daquele ano. A capa, elaborada por Henrique Vaz, já dá o tom do EP: uma imagem aérea da Cordilheira dos Andes, deserta, fria, solitária e envolta em nuvens.
A gravação foi realizada no Gato Preto Estúdios em Feira de Santana, BA, e a mixagem e masterização ficou por conta de Jonas Costa.
É para falar do EP e da recente, mas expansiva, trajetória artística da autora que chamamos aqui Paula Holanda Cavalcante. Confiram:
Inicialmente, como surgiu a ideia do projeto Corpo Expandido? Você já havia tocado em bandas antes, depois foi para a fotografia e para uma área mais acadêmica. O que te deu o estalo para voltar para a música?
Eu comecei a compor no violão sem nenhuma pretensão. A princípio, era algo que eu fazia para relaxar e me distrair, e nem passava por minha cabeça transformar esse ritual em um projeto. Mas depois fui convencida a socializar essas composições, porque muitas pessoas me estimularam a fazer isso.
Esse ritual de composição surge justamente de uma lacuna deixada pela fotografia durante o período da pandemia. Eu aprendi a fotografar a rua, e aprendi a fotografar outras pessoas (muitas vezes aglomeradas). Era o que eu amava fazer, então a ideia de fotografar no isolamento social me pareceu simplesmente insuportável.
Eu até tentei criar projetos de fotografia em casa, mas não havia nenhuma naturalidade. As fotografias que fiz nos últimos dois anos são sofríveis (risos). Em 2020 participei de uma oficina de criação de trilha sonora para fotografias, acho que esse foi o grande estalo.
E por que a escolha pelo instrumental com o violão e não mais uma banda convencional?
A escolha por este formato foi meramente sanitária (risos). Criei um projeto solo porque estava respeitando o isolamento social. O violão era um instrumento que eu já tocava e tinha em casa. Mas não acho este formato tão fora do comum.
Como foi o processo de criação do EP? De onde surgem as músicas?
Foi muito livre e intuitivo, as composições surgiram muito espontaneamente, basicamente inspiradas por fotografia, literatura, natureza e meus próprios pensamentos e sentimentos.
Você, de alguma forma, relaciona a música à outras áreas que você já trabalhou antes? Como a fotografia, por exemplo?
Com certeza! Acho que não consigo separar meu interesse por imagem do meu interesse por som, por isso meus projetos sempre seguiram caminhos muito interdisciplinares.
Meu interesse por fotografia está muito vinculado ao meu interesse por capas de discos, ensaios fotográficos de artistas da música e coberturas de shows. Coisas que eu inclusive já fiz profissionalmente e pretendo voltar a fazer quando me sentir confortável para isso.
Como tem sido a recepção do EP?
A recepção está superando qualquer expectativa que eu poderia ter. Meu lançamento de estreia é um EP extremamente cru e sem muito planejamento, então a verdade é que eu não tinha expectativa nenhuma.
Mas antes mesmo que ele fosse lançado oficialmente, o Alexandre Matias decidiu me fazer uma surpresa e enviou o vídeo privado do EP para o Kiko Dinucci, que elogiou minhas composições e me incentivou a continuar compondo.
Eu evito palavras como “fã” ou “ídolo”, e não gosto de dinâmicas de fanatismo e idolatria, mas também não vou negar que é muito emocionante receber apoio de pessoas que você admira e que fazem trabalhos que te inspiram diretamente. Consegui alcançar o radar de artistas e profissionais que considero gigantescos e conheci muitas pessoas legais graças ao EP e a quem acreditou nele.
Como você vê o alcance da música instrumental no cenário atual? Dá pra passar uma mensagem sem usar palavras?
Não sei responder à primeira pergunta com precisão, acho que não tenho conhecimento o suficiente para desenvolvê-la de maneira objetiva. Eu sinto que a música instrumental é muito desvalorizada em relação à canção, o que é uma pena, pois no Brasil muitos dos melhores projetos musicais em atividade atualmente são instrumentais, na minha opinião.
Meu palpite é que boa parte das pessoas não tem interesse em música instrumental porque não tem interesse em escutar e nem se comunicar por vias que não envolvem as palavras.
O que me leva à resposta da segunda pergunta: dá para se comunicar sem usar as palavras? É óbvio que dá, e é isso que eu estou tentando fazer há um bom tempo.
É por isso que eu fotografo, é por isso que eu faço música instrumental e é por isso que eu dou aula de arte, porque quero que outras pessoas aprendam a se comunicar para além das palavras, com a fotografia ou com a música instrumental, por exemplo.
É importante ter consciência de que, como toda linguagem, linguagens visuais e sonoras não são naturais, são ferramentas socioculturais e, portanto, precisam ser aprendidas, mas o sistema educacional do Brasil geralmente privilegia as linguagens textuais em detrimento das outras.
Você citou o Kiko Dinucci, o que mais você tem ouvido e que tem te inspirado ultimamente?
Sun Ra, Pharoah Sanders, Alice Coltrane, Don Cherry, Baden Powell, Bert Jansch, John Fahey, Gábor Szabó, Frantz Casseus, Violeta Parra.
Os nomes das faixas do seu EP parecem sempre remeter a cenários, a cascata, as ruínas, o riacho. O que esses lugares representam para você? O que eram essas ruínas?
As composições foram bastante inspiradas por fotografias e paisagens da natureza. Para mim a natureza representa paz e conexão com o mundo interior, uma introspecção quase espiritual, que os contextos urbanos não nos permitem experienciar.
E os títulos das faixas são objetivos e ao mesmo tempo subjetivos, eu por exemplo compus “Riacho” pensando na materialidade de um riacho, mas também na sensação que um riacho pode causar, que talvez seja uma ideia mais abstrata. Assim como “ruína”, é uma palavra que pode evocar tanto materializações quanto abstrações.
Objetivamente, “ruína” me remete a texturas ásperas e rochosas como as representadas na fotografia da Cordilheira dos Andes que usei como capa do EP, e subjetivamente, ela me remete à incerteza e vulnerabilidade que penso ter sido presente na vida de todo mundo em algum momento desde que a pandemia começou.
Quais são os próximos passos para o projeto Corpo Expandido? A gente pode esperar apresentações ao vivo?
Quero lançar um LP este ano. Em relação às apresentações ao vivo, a ideia de fazer shows, por enquanto, é algo que me deixa em dúvida. Infelizmente, ainda me sinto desconfortável em ambientes fechados e que têm uma concentração muito grande de pessoas. Apesar de que, quando eu me apresentar com esse projeto, acho que não vai dar muita gente (risos).
Existe certo receio, mas de qualquer forma, estou me preparando, porque uma hora esse dia vai chegar, né? O próprio Matias está querendo organizar um show meu em São Paulo, surgiram convites na Bahia também. Vamos ver.
E pra finalizar, o que você tem a dizer pra quem está pensando em começar um projeto agora, pro pessoal que sente essa necessidade de criar algo?
Se você quer criar algo, descubra uma maneira de criar que seja possível. Se você já sabe como criar, crie.
“Corpo Expandido” está disponível no Bandcamp e nas redes de stream.
Brasiliense, 23 anos. Escrevo e tiro fotos nas horas vagas. Tô escrevendo sobre música porque ainda não to fazendo música.