Lembro que estava programando muitos shows com minha antiga banda quando a pandemia impôs a quarentena. Assistir lives foi algo que me deprimia nesses dias, mas acontece que tive tempo para rever alguns discos e redescobrir um amor antigo, que era colecionar as famosas Demos, e nessa revisitação comecei a cair de cabeça a procura de bandas novas pelo Brasil e conheci muita coisa legal.
ANGVSTIA foi uma delas e me chamou atenção pela sua sonoridade bem noventista alá bandas como Street Bulldogs, que marcaram minha adolescência. Outro fato curioso foi a banda ter dado início justamente nesse tempo de “seca”, onde o underground brasileiro se encontrava sem perspectiva alguma, uma vez que a cena é vivenciada de verdade em encontros e pequenos shows em bares pelos cantos das cidades Brasil afora.
Apesar de tudo a cena independente insiste em sua teimosia.
Já conversei com algumas bandas sobre os efeitos da quarentena em sua jornada, muitos lançamentos e shows adiados, turnês, enfim. Mas confesso que vocês serão, a primeira banda que deu start durante a pandemia, que entrevistarei. Me conta como foram os primeiros passos da banda e nos apresenta o time?
Imagino que pra galera envolvida com música pareça mesmo contra producente produzir algo nesse momento bosta que começou em 2020, vem perdurando em 2021 e vai continuar em 2022, mas nem era essa a nossa intenção no inicio da ideia.
Estávamos confinados em casa Lucão (em Teresina – PI) e eu (Dave). Somos amigos a mais de uma década e como ele sempre posta vídeos tocando covers na guitarra e nosso gosto musical é praticamente o mesmo, nós pensamos em fazer um som tocando de casa pra aliviar o tédio, ele em Teresina e eu em São Paulo, sou do Maranhão mas moro em SP desde 2016.
Fizemos uns testes, a dificuldade da estrutura e de tudo que nós estávamos vivendo deu uma esfriada no que até então era só uma “brincadeira”. Lucas veio de mudança pra SP no início de 2021 e isso deu outro peso pro projeto.
Amadurecemos a ideia, chamei meu grande amigo Emiliano pra ajudar a gente a montar umas linhas de bateria e assim gravamos o primeiro EP, “Vivendo na Sujeira”, sem nunca ter tocado juntos uma vez sequer. Depois dessa gravação ele comprou a ideia, pra gente foi muito foda, pois o cara só toca em bandas de grind, crust e nem imaginávamos que ele também tinha um pé no hardcore melódico dos anos 90 e 2000.
Durante a gravação do segundo EP, “Devastado”, Emiliano perguntou se a gente não pretendia botar outra guitarra na banda, pois ele tinha um amigo que tinha pirado no que a gente tava fazendo e concordamos testar. Conhecemos melhor o Marcos e ele foi certeiro, o bicho mal chegou e já jogou o riff que hoje compõe a música “Esmagado Pelo Trem ou Duas Vidas” e desde então a formação é Dave (baixo e voz), Lucas (guitarra e voz), Emiliano (bateria) e Marcos (guitarra).
Pensando um pouco na letra da música “Pareidolia”, você diria que começar a compor sons novos, em uma banda nova, foi uma resposta a esse “desconforto” gerado no isolamento social durante a pandemia?
Lucão e eu somos do nordeste do país e lá a gente não tem muito costume de se juntar pra tocar covers, geralmente as bandas de lá já começam todas autorais, mesmo quando não se tem uma pretensão de ser algo que dure. A não ser que a intenção seja ser cover mesmo. Acho que é uma parada cultural.
Então é meio que natural pra gente escrever e tentar musicar nossas coisas. “Pareidolia” é um grito abafado de alguém que se sente preso e não vê uma perspectiva de melhora. De certa forma é um pessimismo que estamos vivenciando desde o início da pandemia, pelo menos do nosso ponto de vista.
Como funcionou e funciona o processo de composição das músicas?
Não sei se posso dizer que temos apenas um processo, ainda tocamos bastante de casa, gravando em interfaces e mandando uns pros outros. Mas também gostamos muito de se reunir pra tocar juntos e ver o que sai (essa é nossa forma favorita, mas nem sempre viável por vários motivos da vida adulta).
No mais tentamos ensaiar regularmente e durante o ensaio as vezes sai algo, bem naturalmente mesmo.
Já estão prontos para o rolê? Como tem sido a repercussão desses últimos singles lançados? Agora que houve abertura para eventos, vão cair pra estrada?
Acho que nossa maior vontade é fazer isso, mas estamos aguardando com cautela o desenrolar desse fim de ano (2021) pra ver como tudo vai acontecendo. Temos oito músicas e uma ainda não gravada que deve acontecer no começo do ano.
Pretendemos fazer nosso primeiro role a partir de março junto com bandas de amigos. Será 05 de março no Studio Rock Together e acredito que quando sair essa entrevista já teremos divulgado o rolê. Serão 5 bandas e visa ajudar o Projeto Colher Cheia, que trabalha distribuindo alimento e outras coisas para pessoas em situação de rua, um projeto muito foda que merece ser apoiado.
Sobre as músicas, acredito que somos bem pouco conhecidos ainda, surgimos numa situação inusitada e não nos apresentamos ao vivo também, mas hoje em dia com plataformas de streaming temos alcançado lugares que provavelmente não chegaríamos de outra forma.
O feedback de quem tem acompanhado tem deixado a gente muito feliz e empolgados, seguiremos fazendo o que a gente gosta da melhor forma que a gente consegue. Acho que essa é nossa fórmula.
Tirando isso, por enquanto estamos bem abertos e como toda banda, querendo tocar o que a gente se dedica tanto pra fazer para outras pessoas que queiram estar conosco nessa caminhada.
As letras trazem temas político/sociais de uma perspectiva intimista, sofrida, carregada de sentimentos que muitos vão se identificar, eu diria até que é algo universal. Queria que vocês comentassem um pouco sobre as letras, e apesar de ser bem direta a mensagem, deixassem aqui mais direto ainda, qual mensagem vocês consideram importante ser dita hoje?
Devo confessar que as letras são todas bem pessoais, de vivências nossas. A gente escreve e também interpreta textos e poesias de amigos bem próximos que foram cedidas pra gente musicar.
Se você interpreta como algo “universal” eu diria que a mensagem que considero importante ser dita hoje é que vocês que nos escutam e se identificam com algo, precisam se lembrar sempre que coisas ruins acontecem com muita gente, mas não precisamos vivenciá-las sozinhos.
Essa banda mesmo não é composta por quatro caras, ela é formada por muitos amigos nossos e isso é o mais importante. Os amigos próximos que correm com você merecem saber da importância deles em sua vida. Isso fortalece, inspira e impulsiona. É uma via de mão dupla.
Depois que me mudei para São Paulo eu peguei um choque com a quantidade de famílias em situação de rua, se colocar no lugar do próximo é o que te alavanca pra tomar alguma atitude, não precisa mudar o mundo, mas ajudar projetos, doar algo que você não precisa, prestar pelo menos atenção ou olhar nos olhos de alguém, muda o mundo dessa pessoa hoje. É um dia de cada vez, uma atitude por vez.
Houve uma época, como todo mundo criado no punk, que eu esperava mudar o mundo. Hoje acredito que faz muita diferença também tentar não ser um bosta.
Eu me lembro que entramos na pandemia com aquele papo de “será diferente”, “capitalistas bonzinhos” , “a natureza vai respirar durante esse tempo e voltaremos melhores”, no entanto o que vimos na prática, foi um maior distanciamento social entre os ricos e o resto da população no mundo, e aqui no Brasil um cenário distópico proporcionado por uma corja facho maldita. Eis a pergunta, e essa é pra tirar do fundo do peito, na sua opinião, existe esperança?
Preciso dizer que não tivemos esse sentimento de “será diferente” ou de melhora no futuro em nenhum momento durante a pandemia.
Desde 2018 o Brasil enfiou os dois pés na merda e o que se mostrou não foi o surgimento de gente escrota, mas sim um sentimento de representação da parte deles. Uma infinidade de discursos racistas, elitistas e fascistas disfarçados de moralismo de gente privilegiada que odeia pobre.
Acredito que o lixo que tá na cadeira da presidência não vai se reeleger, mas não vai melhorar nada com o senado recheado de gente alucinada crentalóide.
Além disso, ainda temos essa onda negacionista/conspiracionista atrasando a vida de todo mundo. O gênio toma vacina desde criança e agora, depois de velho, o cara pensa que tem um 5G criado pela China pra vigiar a vida medíocre dele enquanto ele vai trabalhar dirigindo o carro financiado em 64 vezes e janta miojo, mas o comunismo quer tomar tudo o que ele tem.
Fica bem difícil ter esperança hoje em dia, mas pra não deixar esse clima chato posso dizer no que tenho esperança. Tenho esperança que muitos movimentos que se viram obrigados a surgir pra ocupar o vácuo social que o estado deixou com o esse descaso total vão se fortalecer, crescer e mostrar pra muita gente que na prática dá pra fazer muita diferença de pouco em pouco.
Tem músicas novas no pente a serem lançadas? Um full talvez? Quais os planos?
Temos uma música nova em pré-produção, no início de 2022 deve estar em processo de gravação. O full é uma vontade presente, vamos ver o que acontece durante o ano pra ver nossas possibilidades. Vai acontecer, só não sabemos quando ainda.
Temos uma ideia de criar camisas com estampas variadas pra fazer um caixa pra um futuro full, mas tudo no campo das ideias ainda.
Por enquanto nossos planos se resumem em marcar algumas datas pra tocar e continuar produzindo nossas músicas em formatos menores (EP e single) até aquela vontade de fechar um full se tornar grande demais pra segurar.
Eu agradeço demais pela paciência e atenção, gostei muito da banda e espero poder vê-los por aqui em breve. Deixo esse espaço aberto para se manifestarem livremente.
Nós que agradecemos pelo espaço, estamos muito felizes de poder ter essa chance de falar um pouco sobre ANGVSTIA e poder falar um pouco de como a gente se sente e pensa.
Pode contar conosco e seria muito foda fazer um rolê por aí, em breve vai rolar! Grande abraço!
Você Pode ouvir ANGVSTIA no Bandcamp e nas redes de stream.
Entusiasta e pesquisador amador de bandas novas, viciado compulsivo em cafeína e nicotina e guitarrista/baixista quando a correria da vida adulta me permite.