Foto: Mah Matias
Queer é uma palavra que tem sido muito usada ultimamente, é uma gíria ofensiva em inglês que foi ressignificada já há algum tempo. É também o Q da sigla LGBTQIA+. Dia desses me perguntaram o que significa e, depois de parar pra pensar, respondi “é tudo o que não é heterossexual ou cisgênero” (essa você vai ter que procurar no Google).
Quando ouvi o termo queernejo eu pensei “como assim?!”. Depois de lembrar onde morei minha vida toda, pensei “por que ninguém fez isso antes?”. Minha reação foi a única possível.
Eu só posso falar pelo interior de SP, aqui em todo lugar público que você passa, o povo ouve exclusivamente sertanejo. Tenho 33 anos e o único momento que consigo lembrar onde isso foi um pouco diferente foi nos anos 90, quando pagode e axé faziam muito sucesso.
Nas cidades menores, a festa de peão* é o evento do ano. No ensino médio, a escola onde estudei fazia um horário especial pro turno da manhã poder chegar mais tarde, já que os alunos todos iam pra festa e faltavam no dia seguinte.
É claro que tem gente que detesta tudo isso, mas o impacto cultural é inegável. E eu falo isso pra quem não conhece o interior entender a dimensão disso tudo.
A música sertaneja sempre foi um lugar muito masculino e consequentemente machista, as mulheres têm mudado o cenário há pouco tempo e depois que Gabeu lançou seu primeiro single, “Amor Rural”, em 2019, um grupo de artistas se autodenominou queernejo e estão criando um movimento.
Em outubro de 2020 eles transmitiram a primeira edição do Fivela Fest, primeiro festival de queernejo do Brasil.
Convidamos Gali Galó, cantore e um dos organizadores do Fivela Fest, pra trocar uma ideia sobre queernejo e mais.
*As festas de peão são feiras agrícolas e agropecuárias com exposições, artesanato, muita comida, parque de diversões, rodeio e shows (raramente com alguém que não toque sertanejo).
“É, uns me chamam de caminhoneira, outros me chamam de cowboy viado, mas no fundo, lá no fundo, yo soy libre!”
Você pode se apresentar, pra quem não conhece?
Eu sou Gali Galó, cantore, compositore, empresarie. Atualmente canto dentro do queernejo, um subgênero do sertanejo. É uma música com uma narrativa LGBTQIA+, envolvendo também outros ritmos musicais, como o pop, o indie, o brega, que são estilos que tivemos de referência enquanto o sertanejo era esse ambiente tão machista e heterocisnormativo.
Além da minha carreira artística, também criei a SÊLA, que é um selo pra mulheres na música, e o Fivela Fest, que é o primeiro festival queernejo do Brasil.
Você não começou na música tocando queernejo, você tinha uma carreira no indie rock e inclusive foi idealizadore da SÊLA, né? Você pode falar sobre isso?
Eu comecei compondo, a composição veio antes da interpretação. A escrita era muito forte em mim, eu também sou redatore, publicitárie, jornalista, então comecei compondo minhas músicas e essa música ganhou uma roupagem indie rock porque eu acabei caindo no cenário da música independente em São Paulo.
O indie rock foi quem me abraçou, tenho um disco lançado com outro nome artístico, Camila Garofalo. Comecei no indie e depois fui a fundo buscar minhas raízes, já faz uns quatro ou cinco anos que estou nessa busca pelo queernejo que se moldou hoje.
Sim, sou idealizadore da SÊLA, que é um selo pra mulheres na música, e é muito louco dividir essa persona artística com essa persona empreendedora. Por muito tempo, quando a SÊLA surgiu, eu parei minha atividade artística. Tive que, realmente, durante três anos, me dedicar ao selo.
Lançamos vários projetos, como mostras, festivais, mini documentários, Sessão SÊLA, uma coletânea SÊLA de produtoras musicais, diversos projetos que tomaram bastante o meu tempo, energia e dedicação.
E foi, inclusive, antes de me descobrir uma pessoa não-binárie. Eu tenho essa vivência como mulher e me sinto mulher as vezes (me considero gênero fluido), então a SÊLA é um dos projetos que sou mais feliz e orgulhose de ter criado.
E como surgiu Gali Galó? Você conhecia artistas de queernejo antes de começar a fazer essas músicas?
Gali Galó surgiu justamente depois dessa caminhada com a SÊLA. Quando tive um momento pra respirar e pensar de novo na minha vida artística, entendi que eu precisava ali renascer, então mudei meu nome artístico.
Procurei uma numeróloga, comecei a buscar outros nomes artísticos, demorou muito essa empreitada, foram uns três, quatro anos também. Eu também demorei muito tempo porque tava tentando entender.
No fim descobri que eu tava procurando não só uma persona artística, mas também um nome social, sabe? Tava procurando meu nome não-binárie, eu queria um nome andrógino mesmo.
Então Gali veio dessa mistura de entender quem eu sou com o que eu queria cantar e o queernejo chegou depois.
O termo queernejo foram vocês mesmos quem criaram, certo? É meio sobre artistas LGBTQIA+ fazendo as pazes com sua própria cultura, não?
Sim, fomos nós mesmos quem inventamos o termo queernejo, mais precisamente eu e Gabeu.
O Gabeu tinha inventado o pocnejo e eu já acompanhava. Na verdade ele tinha lançado “Amor Rural” e eu fiquei muito atente aquilo, pensei que eu precisava conhecê-lo porque entendi que eu já tava fazendo e queria fazer algo parecido.
Aí mandei uma mensagem dizendo que queria conhecê-lo e a gente se encontrou durante a Semana Internacional de Música. Ali surgiu uma amizade, uma identificação e logo de cara chamei ele pra ser meu sócio no Fivela Fest. Já fui com o nome pronto porque ele fez muito sentido pra mim.
Ele seria o primeiro festival queernejo do Brasil, que foi quando inventamos o termo. Se pocnejo era pra “bicha” e “viado” no sertanejo, então queernejo abrangeria toda a sigla da comunidade LGBTQIA+.
E é exatamente isso que você falou, é tipo umas pazes mesmo que a gente faz com as nossas raízes, as pazes que a gente faz com o sertanejo depois de vivenciar tanta coisa e depois de ficar marginalizades em outros estilos musicais. Entendemos que a gente podia, sim, fazer parte daquele movimento.
Os artistas de queernejo dão bastante atenção à estética. Vestuário, performance… a gente vê bastante isso nos seus clipes também.
Acredito que os artistas do queernejo se apropriam de uma estética pra poder entregar um produto completo. E eu tenho certeza que as pessoas LGBTQIA+ acabam sendo instigados pela vida para aflorarem sua criatividade de uma maneira mais intensa e até perigosa, eu diria.
Então acredito que não só o vestuário, mas as letras, a produção musical, acho que toda a estética dentro do queernejo é muito bem pensada, não é nada por acaso o que estamos fazendo. Temos essa consciência tanto política, quanto estética. Sabemos muito bem o que queremos entregar, então temos cuidado com esses signos.
E coincidentemente ou ironicamente o Gabeu, a Alice Marcone, Zerzil, Bemti, Reddy Allor, acredito que todo mundo já tem experiência com as artes visuais. É esse negócio de não ter preconceito com outros gêneros e outras linguagens, mesmo. A gente traz elas pra complementar nosso som.
Se a gente assume uma linguagem pop misturada com sertanejo em questão de produção musical, se assume o brega, o indie, também vamos incluir nessa estética o elemento visual e outras linguagens que vão enriquecer a narrativa que queremos passar.
Falando nisso, você pode falar um pouco sobre os singles que você já lançou? É o mesmo artista, mesmo estilo musical, mas eles são bem distintos.
Sim, são bem diferentes porque eles contemplam esse período de três, quatro anos que fiquei sem lançar nada, então são músicas feitas em momentos diferentes e eu quis mostrar esses lados distintos antes de lançar um disco.
Acredito que quando o disco for lançado vou conseguir entregar a linguagem que imagino pra Gali Galó de forma mais clara, mas eu quis mostrar ali que Gali Galó pode ir tanto do rock psicodélico até um arrocha, que é “Fluxo (Mulher do Futuro)”.
É música brega, ao mesmo tempo tem uma psicodelia, só que não deixa de ser pautado sempre pelo sertanejo, pela forma de cantar, pelas melodias, instrumentos e arranjos.
Esses singles vão fazer parte do seu primeiro disco? O que você pode nos contar sobre ele?
Desses singles, só “Fluxo (Mulher do Futuro)” e “Caminhoneira” farão parte do disco, já vou dando spoiler. “Raiz” realmente é um pouco distinto porque foi o primeiro a ser gravado, apesar de ter sido lançado depois. Então “Fluxo (Mulher do Futuro)” e “Caminhoneira” entram no disco com mais oito músicas inéditas.
O disco é um compilado de tudo o que eu escrevi nos últimos cinco anos e de muita coisa que ficou pra trás também. Gali se reinventou muitas vezes nesse período e hoje eu consigo encontrar uma linha curatorial dentro desse turbilhão de coisas que é fazer as pazes com as suas raízes, entender exatamente o que se é, seu gênero, de onde você veio, enfim.
Exatamente como se é não, porque acho que ainda tenho uma grande busca pra descobrir quem eu sou e os milhões de gêneros que existem dentro da não binariedade. Também acho que é complexo a gente colocar uma coisa tão certa.
Mas acredito que é o retrato da minha caminhada agora, fala exatamente do queernejo, de como estou contente em ter encontrado pessoas que estão fazendo coisas parecidas com o que estou fazendo e de como esse som já faz parte de um movimento tão forte.
Em outubro de 2020 foi transmitida a primeira edição do Fivela Fest, festival em que você foi um dos organizadores. Você pode falar um pouco sobre ele?
Ter feito o Fivela Fest foi uma das experiências mais incríveis da minha vida, como artista e como empresárie.
Ele não só reuniu artistas que têm um movimento parecido com o meu e levantam a bandeira LGBTQIA+, que é um assunto que tá em primeiro lugar nos meus debates e na minha música, mas também foi muito importante pra entendermos sobre o mercado, como o público realmente tá sedento por esse assunto e como estão interessados.
Porque sertanejo sendo o estilo musical mais ouvido no Brasil, e tão heteronormativo, cis e branco, a gente entende que fazer queernejo não é como fazer música pop, que é LGBT. O pop aceita o LGBTQIA+, é como um abraço confortável, o sertanejo já não é assim. Então foi muito importante termos dado esse primeiro passo e se fortalecido como grupo, como movimento.
Eu acredito que nas próximas edições vamos descobrir outros artistas, assim como foi nessa primeira, onde praticamente apadrinhamos a primeira dupla queernejo do Brasil, Mel & Kaleb, que surgiu pra se apresentar no festival e continuam aí se apresentando e vão lançar o primeiro EP.
Então Fivela Fest foi uma aventura incrível. E ter feito e produzido ao lado do Gabeu e da Alice Marcone, que são pessoas que admiro tanto e que são tão inteligentes, acho que foi muito rico também pra minha experiência pessoal.
E o que podemos esperar de Gali Galó num futuro próximo? Últimas considerações? Algum recado?
Bom, o que podemos esperar de Gali Galó num futuro próximo é esse disco que eu prometo já há tanto tempo. Mas agora realmente tá rolando, estamos na pré-produção e em breve começamos a gravar. Espero que saia nesse primeiro semestre.
E video clipes. Como você disse, o apelo visual é muito importante. Acho que nós, pessoas LGBTQIA+, estamos de olho no que está acontecendo, nas tendências, temos que estar, precisamos usar todas ferramentas ao nosso alcance pra poder entregar um trabalho, uma mensagem interessante.
E, claro, o queernejo dentro do Fivela só tende a crescer e o nosso grupo tá super fortalecido. Somos muito amigues, dividimos experiências e eu acho que o queernejo veio pra ficar e veio pra quebrar também.
Você pode ouvir Gali Galó no Bandcamp e nas redes de stream.
Ex colaboradore das antigas Six Seconds e Calliope Magazine e alguns blogs de música. Resolveu fazer o próprio site enquanto não tem dinheiro o suficiente pra fazer uma versão BR do Audiotree Live.