Punk rock/hardcore por definição seria um lugar de acolhimento pra todo mundo, você vê isso em todas as letras de música desses gêneros e os fãs são (quase) sempre pessoas que não se encaixam na maioria dos lugares.
Ter um refúgio do mundo é empoderador e por isso esse gênero segue firme e forte, mas há décadas (ou desde sempre?) a cena no mundo todo é hostil, vide o movimento riot grrrl ter sido revolucionário, e há pouco tempo parecia que não tinha mudado muita coisa desde os anos 90. Aliás, vocês já pararam pra pensar que várias riot grrrls migraram pra música eletrônica? O afastamento da cena não foi por acaso.
Felizmente o diálogo aumentou, as pessoas começaram a se movimentar e parece que a cena tá mudando. Em São Paulo especificamente, parece (pelo menos vendo de longe) tar se criando uma cena paralela levada pelas mulheres e LGBTQ+ e o Dyke Fest é a materialização disso.
Ele é um festival queer feminista realizado por lésbicas com o objetivo de fortalecer a cena LGBTQ+ underground. Idealizado por Nati Pinheiro, ele teve sua primeira edição em 2017.
“A minha militância por muito tempo foi feita em espaços mais tradicionais, reuniões de muitas horas, construção de políticas públicas e atos como a Caminhada Lésbica, que organizei durante dez anos, e cada vez mais fui me apaixonando pela possibilidade de passar uma mensagem de resistência e acolhimento por meio do som, poesia e intervenções. Comecei a introduzir tudo que aprendi na produção do encerramento da Caminhada Lésbica de São Paulo, acho que ali nasceu o Dyke Fest de alguma forma”.
“Em 2016, junto com outras mulheres construí o primeiro Maria Bonita Fest que é um festival com foco em hardcore/punk das minas, conheci cada vez mais mulheres e descobri que as minas juntas conseguem fazer qualquer coisa. A relação entre as bandas e produtoras é muito solidária e todas se ajudam muito. Me retirei do Maria Bonita Fest, que segue com outras pessoas, e resolvi fazer um fest direcionado para as mulheres lésbicas, que sempre foi meu espaço de atuação com o hardcore/punk que sempre esteve presente na minha vida. A intenção era o festival “dos meus sonhos” e foi lindo perceber que outras mulheres também sonhavam a mesma coisa. Com o Dyke Fest consigo unir as militantes que mais admiro em rodas de conversa e as bandas que me inspiram”.
O Dyke Fest foi uma das várias iniciativas que surgiu na enorme multiplicação da cena musical underground brasileira nos últimos anos.
“Na ‘cena’ a diferença é absurda, a três anos atrás tive que pesquisar muito e fazer escolhas estratégicas pro festival funcionar, tinha muita banda boa parada e outras que estavam bem no começo. Agora na quarta edição daria pra montar um fest de três dias com várias bandas incríveis”.
E com esse monte de banda nova, uma cena queercore tá se formando. Como no mundo todo, a gente geralmente chama de queercore as bandas que cantam sobre a vivência LGBTQ+ ou que apenas tem membros LGBTQ+, mesmo elas não necessariamente sendo da vertente punk/hardcore e no Dyke Fest isso não é diferente, há bandas de todos os gêneros musicais.
Perguntei pra Nati sobre esse período:
“O Dyke Fest surgiu junto com a minha banda (Bioma), foi uma mudança bem grande na minha vida, fui influenciada por textos anarquistas da América Latina e da Europa, saí da militância lésbica clássica por não concordar com o andamento de algumas pautas e a postura de algumas mulheres e decidi reformular o meu discurso, rompi com dez anos da minha vida. Quando disse que estava fazendo um festival Queer e tinha uma banda Queer e queria começa a falar das nossas vivências e lesbianidade a partir dessa ótica Queer muitas mulheres racharam comigo, mas fiz o dobro de amizades. Depois de um ano outras bandas brasileiras começaram a adotar o termo Queer e queercore, isso foi mágico. Sinto que estamos criando espaços únicos e horizontais, repensando a nossa autogestão, presando a união e a rebeldia a partir da ótica das mulheres, rompendo com o machismo, racismo, classismo e a mercantilização das nossas pautas que sempre foi muito presente no movimento LGBTQI+”.
Festivais de música nunca tem só música e nessa quarta edição o Dyke Fest teve a roda de conversa “Branquitude é Privilégio Branco” mediada por Bah Lutz (da banda Bertha Lutz), exposições das artistas e produtoras independentes Editora Malagueta, Empodera Distra, Underline, Thamú Candylust, Transilvegan, Carol Mendes, Thaís e Elo Torrão, Mulheres Adultas Têm Pelos, Erika Araújo e Mari Crestani, que fez toda a identidade visual dessa edição do Fest. Aquelas colagens me hipnotizaram por um bom tempo.
Houveram também projeções da Concha, que é um trabalho com ilustrações e animações em 3D.
“O que uma lésbica quiser propor será mais que bem vinda”, diz Nati.
Mas falando da música, que é o motivo de vocês tarem lendo até agora, essa edição contou com as seguintes bandas:
Sânias (Sorocaba) era a única banda do lineup que eu não conhecia. Elas são um duo de stoner recém formado e fizeram um show incrível. Sigam elas nas redes que é certeza que vem coisa boa por aí.
Crime Caqui (São Paulo/Sorocaba) é uma banda que mistura dreampop, indie e post-rock. Sua “atmosfera etérea e quase hipnótica”, como se descrevem na bio das redes sociais, casou muito bem com as animações de Concha, projetadas ao fundo do palco durante todo o Fest.
Elas publicaram na internet alguns vídeos ao vivo e pretendem lançar o primeiro EP (ou disco, não sei ao certo) ainda esse ano.
Crust não é muito a minha praia, mas o disco da Rastilho (São Paulo) foi talvez o único que eu sentei em casa e ouvi inteiro mais de uma vez. Agora ao vivo é outra história e o show deles foi lindão. Entre outras coisas, a vocalista Elaine falou bastante sobre brigas dentro da própria militância e eu também acho que a gente devia parar pra pensar um pouco sobre isso.
Miêta (Belo Horizonte) colocou todo mundo pra dançar quase em sincronia. Foi a primeira vez que vi um show delas, foi apaixonante e unanimamente pediram pra ele não acabar. Se você não conhece a banda, tá perdendo tempo, é sério. Elas também tocaram várias músicas novas do próximo disco, que já está sendo gravado.
A última apresentação foi da Tuíra (Rio de Janeiro), que é uma banda com muito a dizer e cheia de referências, é pra você chegar em casa e pesquisar o que você ouviu no show. Como não dá pra não falar de política hoje, a maioria das letras (e o nome da banda) é inspirada por ou homenageia mulheres militantes que se tornaram símbolo de luta. Isso tudo é embalado por uma mistura delicinha de indie, “real” emo e mais alguma coisa.
O primeiro EP da banda, “Calma e Força”, será lançado nesse segundo semestre e após ver o show, eu digo: preparem-se!
Eu fui pelas bandas (tenho ido mais vezes pra São Paulo ver bandas locais do que bandas internacionais, vocês tão de parabéns), mas o Dyke Fest não foi só um show, foi um lugar surpreendentemente acolhedor e acho que o motivo disso pode ser explicado com uma frase da Adriessa, vocalista da Anti-Corpos, no show da edição de Março: “Isso aqui foi lindo. Esse foi o melhor lugar que eu já toquei porque esse aqui é um lugar pra todo mundo”.
“O objetivo é criar um lugar acolhedor pra real fazer amizades e conexões”, disse Nati.
Objetivo alcançado.
Ex colaboradore das antigas Six Seconds e Calliope Magazine e alguns blogs de música. Resolveu fazer o próprio site enquanto não tem dinheiro o suficiente pra fazer uma versão BR do Audiotree Live.